23 abril 2007

Chocolate

Ele era caixa de banco. Vivia para ouvir reclamações o dia todo, como se fosse o responsável pelos problemas financeiros do mundo, ou se não fosse, deveria ser no mínimo capaz de resolvê-los, afinal, ele era a pessoa que estava atrás do balcão.

Olhava insistentemente para o relógio, na esperança de que o tempo passasse mais rápido, para poder descansar durante o intervalo de almoço.

Costumava almoçar em um pequeno restaurante por quilo que ficava logo ali, atravessando a praça. Não que a comida fosse ótima, mas já havia se acostumado com as mesmas pessoas que comiam apressadas todos os dias. Até já se atrevia a cumprimentar algumas delas com um “Olá” ou “Como vai?!”.

Após o almoço, passava na banca de jornais, dava uma espiada nas notícias e comprava um chocolate. Atravessava a praça degustando seu minuto de paraíso, desviando das crianças que corriam com seus uniformes. Prometia a si mesmo que no amanhã não o comeria, pois precisava adquirir hábitos mais saudáveis.

Foi em um desses dias que, comendo seu chocolate, ele teve a visão do ser mais deslumbrante da Terra. Ela era linda! Não como as estrelas da tv. Tinha uma beleza singela, mas incomparável. Tinha os cabelos revoltos presos com um pincel e uma mecha teimosa de franja que insistia em cair sobre os olhos, atrapalhando sua leitura aparentemente interessantíssima. Tudo parecia desaparecer diante de tanta beleza. Até esqueceu o chocolate que já derretia na mão. Queria ficar ali para sempre, apenas observando a moça sentada no banco da praça.

Já atrasado, retornou ao trabalho. Nunca as reclamações lhe soaram tão melodiosas. Ele nem mesmo se importava com as velhinhas que se atrapalhavam ao digitar as inúmeras senhas do cartão.

Nos dias seguintes almoçava apressado para poder observar por mais alguns segundos a moça com o pincel no cabelo. Talvez fosse professora, ou talvez uma artista. Artista era algo que combinava com sua beleza.

Passou a sentar-se no banco em frente ao dela todos os dias. Pedia para que o chocolate, que parecia muito mais gostoso, fosse eterno para não ter que sair mais dali. Nesse dia decidiu que a cumprimentaria na partida. Respirou fundo e, ao perceber que ela ergueu os olhos ao vê-lo levantar, soltou um quase mudo “tchau...”. Ela sorriu. Achou que ia morrer naquele instante. Era o sorriso mais doce que já recebeu, talvez o único do dia.

No dia seguinte, ao sair da agência, não foi almoçar. Muito menos se lembrou da guloseima de costume. Colheu uma margarida do canteiro da praça e caminhava segurando-a com as mãos trêmulas.

Sentou-se no banco e esperou até que ela chegasse. Foi quando ele a avistou. Trazia os cabelos soltos. Mas dessa vez não se sentou no banco, nem mesmo tinha o livro nas mãos. Ela caminhava em sua direção como se flutuasse. Atônito se levantou e observou a moça que vinha.

Quando estavam frente a frente, sem saber o que fazer levantou a pequena margarida, que nessa altura já estava murcha com o suor de suas mãos. Ela a pegou, cuidadosamente colocou-a nos cabelos e lhe deu um doce beijo. Sorriu, abaixou os olhos e se foi. Ele nem ao menos pode ouvir sua voz.

Desse dia em diante, a jovem nunca mais voltou à praça e os chocolates nunca mais tiveram o mesmo sabor, comparados ao doce gosto dos seus lábios...

15 abril 2007

Auto-retrato

Sentada no balcão de um bar ela pede mais uma dose na tentativa de afastar os medos, amenizar a insegurança talvez. O álcool lhe causa uma agradável sensação de poder. O que mais precisa nessa hora é um pouco mais de confiança. As roupas ousadas e as unhas vermelhas não passam de uma tentativa frustrada de transgredir suas regras pessoais, em busca de algo que não é...

Acende mais um cigarro. Promete a si mesma que só fuma em momentos de tensão, mas já pensa em comprar mais um maço. Pensou que havia nascido para ser arquiteta, mas em muitas das vezes chega a conclusão de que só continua com tudo isso por que é teimosa demais para largar tudo agora, e já que começou, que ao menos seja bem feito.

Termina o copo em um só gole. Ela o fita de relance. Seus olhos apenas pedem para sair dali. Ele levanta, paga a conta. Suas mãos se tocam. Mas nenhuma palavra é dita.

Ele pára o carro. A observa. Ela não se despede. Apenas sai. Talvez isso seja um adeus. Sem despedidas, sem um beijo. Crueldade? Não... Autopreservação, eu diria.

Ela entra no apartamento escuro. Repara que se apaga a última luz do prédio em frente ao seu. Todos se foram.

Joga um pouco de água no rosto e se observa no espelho. Se acha bonita. Não por ser um exemplo de beleza, mas por uma tentativa de recuperar a já perdida auto-estima. Os olhos borrados de maquiagem acentuam o olhar triste, quase melancólico, o olhar de quem nunca amou.

Ao se deitar logo pega no sono. O efeito da bebida ajuda a curar a insônia. Dorme como quem não tem culpa. Sem se dar conta de que no outro dia, mais uma vez, vai se arrepender de tudo que não fez. Sem saber que, no outro dia voltarei a ser somente eu.

07 abril 2007

Refrão de um Bolero

Eu que falei: "nem pensar..."
Agora me arrependo, roendo as unhas
Frágeis testemunhas
De um crime sem perdão

Mas eu falei sem pensar
Coração na mão, como refrão de um bolero
Eu fui sincero
Como não se pode ser

Um erro assim tão vulgar
Nos persegue a noite inteira
E, quando acaba a bebedeira,
Ele consegue nos achar

Num bar
Com um vinho barato
Um cigarro no cinzeiro,
E uma cara embriagada no espelho do banheiro

Ana... Teus lábios são labirintos... Ana
Que atraem os meus instintos mais sacanas
O teu olhar sempre distante sempre me engana

Ana... Teus lábios são labirintos... Ana
Eu sigo a tua pista todo o dia da semana
Eu entro sempre na tua dança de cigana

Ana... Teus lábios são labirintos... Ana
Que atraem os meus instintos mais sacanas
E o teu olhar sempre distante sempre me engana
E eu sigo a tua pista todo o dia da semana

O que eu falei foi sem pensar...
Foi sem pensar.
Engenheiros do Hawaii

*ps. Pessoalmente não sou muito a favor de postar letras de música... mas essa realmente mexe comigo...

05 abril 2007

Mosaico

Ela atirou um copo na parede
e chorou, juntando os cacos
de um coração despedaçado...


04 abril 2007

Luz de velas

Abriu a porta para o rapaz da floricultura que trazia nas mãos um belo buquê de flores do campo. Nunca gostou de rosas. Agradeceu com uma pequena gorjeta e fechou a porta lendo o cartão escrito com uma caligrafia quadrada inconfundível: “Te encontro no jantar”.
Preparou seu prato preferido. Colocou uma garrafa de vinho para gelar. Arrumou a mesa com capricho dispondo um par daqueles pratos de porcelana quadrados dos quais não abriu mão quando comprava as louças para o pequeno apartamento que comprou a tanto custo.
Tomou um banho demorado, prendeu os cabelos e colocou aquele vestido preto que só usava em ocasiões especiais. Passou o perfume de orquídeas que estava economizando, pois já estava no fim.
Olhou para a mesa. Algo faltava. Tirou do armário um antigo castiçal que costumava usar nas festas de fim de ano. Parecia perfeito para a ocasião. Deu mais uma olhada no espelho do corredor e decidiu soltar os cabelos. Achava que assim aprecia mais jovem.
Acendeu cuidadosamente as velas e sorriu ao olhar mais uma vez as flores sobre o balcão. Serviu os dois pratos e fingiu surpresa ao encontrar, sob o seu, um pequeno bilhete com um “Eu te amo” escrito com a mesma caligrafia.
Comeu, tomou seu vinho, tudo no mais profundo silêncio, que só era quebrado pelo ronronar do gato que insistia em se acarinhar em seus pés.
Ao terminar, sentou-se no sofá bebendo mais uma taça. Intimamente preferia uma xícara de chá, mas havia desistido do hábito há alguns anos cansadas das noites de insônia que lhe causava.
Aos poucos pegou no sono, com o gato aninhado no colo. Quem quer que esperasse nunca chegou.
Na mesinha ao lado repousava um pequeno caderno de telefones, escrito com a mesma caligrafia quadrada, e de dentro dele pendia um ticket da floricultura, pago com seu próprio cartão de crédito.

03 abril 2007

Incertezas

Ela abre de novo seu blog na internet, na esperança de que mesmo depois de um mês da última postagem algum comentário novo surja. Mesmo que seja algum amigo dizendo: “Você não vai atualizar isso aqui não?!” No fundo comentários assim sempre acabam lhe motivando a tentar escrever algo.
Mas nada. Tudo igual. Os mesmos 5 comentários que estavam lá ontem, semana passada, retrasada. Cada vez que abre insistentemente sua página, duas, três vezes ao dia, a sensação de vazio aumenta mais e mais. Por que não escrever algo? É simples. Todo mundo consegue! Mas a página em branco é sempre um problema. Folhas em branco sempre a assustaram. Nunca foi muito boa em dar o primeiro passo, essa coisa do desconhecido não lhe agrada muito. Prefere a segurança da rotina a se aventurar em incertezas. Talvez por isso esteja sozinha.
Faz uma xícara de chá, o amargo parece limpar a alma, ou punir as atitudes incertas que talvez tenha pensado em cometer. Para que se arriscar afinal?
Faz um carinho no cachorro que dorme ao lado da cadeira. Na verdade preferia um gato, mas as coisas nem sempre são como gostariam. Talvez tenha cachorros por que são muito mais previsíveis. Quem sabe um dia tenha um gato.
A folha continua em branco e os mesmos 5 comentários a perturbar. Por que não escrever sobre amenidades?! Costumam dar ibope! Tenta algo sobre pessoas... mas as idéias passam... Escreve uma linha, duas... Não, apaga. É inútil... Pega mais uma xícara de chá, preparada para a insônia que virá. Sabe que mais de duas xícaras são sinônimos de uma noite instável. Por que não a certeza de um sono tranqüilo? Já está se arriscando demais por hoje mocinha...
As idéias não vêm, e quando vêm não passam mais de cinco minutos no papel antes de serem rabiscadas, ou amassadas e atiradas ao cesto de lixo. No fundo não escreve por falta de criatividade, mas por um indesejável instinto de auto-preservação. Talvez tenha medo de demonstrar demais suas fraquezas naquelas poucas linhas.
Amassa mais uma folha de papel... Enche mais uma xícara. Promete que aquela será a última. Tenta escrever sobre si mesma... Talvez isso funcione, pelo menos uma vez. Não. Rabisca as três linhas que havia escrito, apaga a luz e vai se deitar. Afinal, por que insistir nessa teimosia de tentar escrever algo, se é tão mais seguro confiar na presença dos mesmo 5 comentários que já se tornaram rotina. A noite provavelmente será longa. Quem sabe amanhã tente escrever algo sobre essas incertezas.

Ter ou não ter namorado? Eis a questão.

Quem não tem namorado é alguém que tirou férias não remuneradas de si mesmo. Namorado é a mais difícil das conquistas.
Difícil porque namorada de verdade é muito raro. Necessita de adivinhação, de pele, saliva, lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia.
Mas namorado, mesmo, é muito difícil. Namorado não precisa ser o mais bonito, mas ser aquele a quem se quer proteger e quando se chega ao lado dele a gente treme, sua frio e quase desmaia pedindo proteção. A proteção não precisa ser parruda, decidida; ou bandoleira basta um olhar de compreensão ou mesmo de aflição.
Não tem namorada quem não sabe o gosto de chuva, cinema sessão das duas, sanduíche de padaria ou drible no trabalho.
Não tem namorado quem faz pacto de amor apenas com a infelicidade. Namorar é fazer pactos com a felicidade ainda que rápida, escondida, fugidia ou impossível de durar.
Não tem namorada quem não sabe o valor de mãos dadas; de carinho escondido na hora em que passa o filme; de flor catada no muro e entregue de repente; de poesia lida bem devagar; de gargalhada quando fala junto; de ânsia enorme de viajar junto para a Escócia ou mesmo de metrô, bonde, nuvem, cavalo alado, tapete mágico ou foguete interplanetário.
Não tem namorado quem não gosta de falar do próprio amor, nem de ficar horas e horas olhando o mistério do outro dentro dos olhos dele, abobalhados de alegria pela lucidez do amor.
Não tem namorada quem não tem música secreta, quem não dedica livros, quem não recorta artigos; Não tem namorada quem ama sem gostar; quem gosta sem curtir; quem curte sem aprofundar.
Não tem namorado quem nunca sentiu o gosto de ser lembrado de repente no fim de semana, na madrugada, ou meio-dia do dia de sol em plena praia cheia de rivais. Não tem namorado quem ama sem se dedicar; quem namora sem brincar; quem vive cheio de obrigações.
Não tem namorada quem confunde solidão com ficar sozinho e em paz. Não tem namorada quem não fala sozinho, não ri de si mesmo e quem tem medo de ser afetivo.
Se você não tem namorado é porque não descobriu que o amor é alegre e vive pesando duzentos quilos de grilos e medos. Ponha a saia mais leve, aquela de chita e passeie de mãos dadas com o ar.
Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricções de esperança. De alma escovada e coração estouvado, saia do quintal de si mesmo e descubra o próprio jardim.
Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem passe debaixo de sua janela. Ponha intenções de quermesse em seus olhos e beba licor de contos de fada.
Ande como se o chão estivesse repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante a dizer frases sutis e palavras de galanteria.
Se você não tem namorado é porque ainda não enlouqueceu aquele pouquinho necessário a fazer a vida parar e de repente parecer que faz sentido.
ENLOU-CRESÇA.

Carlos Drummond de Andrade